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domingo, novembro 30, 2008

A melancolia não é uma besta quadrada. É obtusa. Abre-se em farpas e vai escolhendo os lugares do corpo onde perfurar. Tenho melancolia nos dedos, vejo-a no amolecer do papel. Tenho melancolia na boca, que a comprime e horroriza. Da boca às mãos, um trajecto fúnebre – o caminho que os mortos fazem até chegar a mim.
(A minha melancolia alimenta-se dos meus mortos.)
Passou um comboio pelo meu fazendo-o sobressaltar-se e eu com ele. A máquina levou-me o coração junto – isso e alguns vermes – aumentando-me o rasgo no peito. A Dona Tê pensa que eu nasci sem coração, mas eu sinto que ela nasceu sem cérebro. Nasceu com uma cabeça de nada, o que já é muito.




Menina Limão



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sábado, novembro 29, 2008

sexta-feira, novembro 28, 2008

tradução caseira da lebre



estes olhos
apenas se abrem
para avaliar ausências





Alejandra Pizarnik



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quinta-feira, novembro 27, 2008

Que horas são? — Sim, estou feliz
e só me falta um guizo no pescoço
para enquanto tu dormes ele retinir sobre ti.
Não ouviste então a tempestade? O vento assolou as muralhas,
a torre urrou como um leão pelo portão
a ranger nas dobradiças.
— Como é que podes não te lembrar?
Eu trazia um vestido cinzento muito simples
de abotoar nos ombros. — E logo a seguir
o céu explodiu em mil clarões.
— Como é que eu podia entrar
se tu não estavas sozinho! — E vi de súbito
as cores de antes de haver olhar.
— É pena
que não possas perdoar-me. — Tens toda a razão,
foi um sonho de certeza.
— Por que é que mentes?
Por que me tratas pelo nome dela?
Amá-la ainda? — Sim! Queria muito
que ficasses comigo.
— Não estou triste,
eu devia ter adivinhado.
Ainda pensar nele? — Não estou a chorar!
E é tudo? — De ninguém como de ti.
Pelo menos és sincera. — Fica tranquilo,
vou-me embora da cidade. — Fica tranquilo,
eu vou-me embora daqui.
— Tens umas mãos tão bonitas.
É uma velha história. Foi duro
mas passou sem deixar mossas
. — Não tem de quê,
meu caro, não tem de quê. — Não sei
que horas são e nem quero saber.




Wislawa Szymborska



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quarta-feira, novembro 26, 2008

Pssst! é só para avisar que abriu uma livraria maravilha em Lisboa
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no nº11 da rua Cecílio de Sousa, entre o Príncipe Real e a Praça das Flores

(É a primeira livraria portuguesa de poesia. Livros novos, esgotados e raros)

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terça-feira, novembro 25, 2008

Abriu no colchão as valas possíveis
e enterrou por ordem alfabética
cada parte do corpo: os pêlos
os pântanos as unhas encravadas
e as unhas que outros cravaram pelas coxas.
Estudou cuidadosamente as ondas as horas
para que não restassem dúvidas
sobre os caminhos marítimos
para a noite. Por fim
podou todas as janelas do quarto;
bebeu o vinho;
roeu a carne do quarto
até não sobrar nenhum coração.



Catarina Nunes de Almeida



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sábado, novembro 22, 2008

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quinta-feira, novembro 20, 2008

tradução "muito" caseira da lebre


Mais do que isto, sim
Mais do que isto, podemos ficar caladas.
Com um olhar parado
como aquele dos mortos.
Podemos fixar durante longas horas
o fumo a sair de um cigarro
a forma de uma chávena
a flor esbatida no tapete
o slogan a desaparecer na parede.
Podemos afastar as cortinas
com dedos enrugados e ver
a chuva cair fortemente no beco
uma criança parada na porta
com um colorido papagaio de papel
uma carripana a sair da praça vazia
numa pressa barulhenta.
Podemos estar ali paradas
Ao pé das cortina – cegas, surdas
Podemos gritar com uma voz bastante falsa, bastante remota
“eu amo…”

Nos braços dominadores de um homem
podemos ser uma saudável e bonita mulher.
Com um corpo como uma toalha de mesa de cabedal
com dois grandes e duros peitos,
na cama com um bêbedo, um louco, um vadio
podemos manchar a inocência do amor.

Podemos degradar com astúcia
todos os mistérios profundos
podemos continuar a resolver palavras cruzadas
a descobrir alegremente as respostas sem sentido
respostas sem sentido, sim – de cinco ou seis letras.

Com cabeça inclinada, podemos ajoelhar-nos uma vida inteira perante a grade dourada de um túmulo
podemos encontrar deus numa sepultura sem nome
podemos trocar a nossa fé por uma moeda sem valor
podemos apodrecer no canto duma mesquita
como um velho recitador de orações de peregrinos.
Podemos ser constante como o zero
Nas somas, subtracções, ou multiplicações.
Podemos pensar nos teus - mesmo nos teus – olhos
Como buracos sem brilho nuns sapatos velhos.
Podemos secar-nos numa bacia, como água.

Com vergonha podemos esconder a beleza de um momento juntos
no fundo de um baú
como uma velha e estranha foto,
na moldura vazia de um dia podemos mostrar
a imagem duma execução, duma crucificação, ou de um martírio,
podemos tapar as rachas na parede com uma máscara
podemos lidar com imagens mais ocas do que essas.

Podemos ser como bonecas de corda
e olhar para o mundo como olhos de vidro
e jazer durante anos entre rendas e lantejoulas
o corpo recheado de palha
dentro de uma caixa de feltro,
e a cada toque de luxúria
gritar sem nenhuma razão
“Ah, que feliz sou!”




Forugh Farrokhzad




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quarta-feira, novembro 19, 2008

tradução caseira da lebre



Esta é a chave para isso.
Esta é a chave para tudo.
Preciosamente

Sou pior que os filhos do couteiro
a apanhar pó e pão.
Aqui estou eu a tamborilar perfume.

Deixa-me afundar na tua carpete,
o teu colchão de palha. O que quer que esteja à mão
porque a criança em mim está a morrer, a morrer.

Não é que eu seja gado para ser comido.
Não é que eu seja uma espécie de rua.
Mas as tuas mãos encontraram-me como um arquitecto.

Jarro cheio de leite! Foi teu há anos
quando eu vivia no vale dos meus ossos,
ossos mudos no pântano. Pequenas-coisa-de-brincar

Talvez um xilofone com pele
estranhamente esticada sobre ele.
Só mais tarde se tornou algo real.

Depois comparei o meu tamanho com o das estrelas de cinema
Eu não estava à altura. Algo estava entre
os meus ombros. Mas nunca o suficiente.

Claro, havia um prado,
mas nenhuns jovens a cantar a verdade.
Nada por onde dizer a verdade.

Ignorante de homens estou ao lado das minhas irmãs
E erguendo-me das cinzas eu gritei
O meu sexo será trespassado.

Agora sou a tua mãe, a tua filha,
a tua coisa nova em folha – um caracol, um ninho
Estou viva quando os teus dedos estão

Uso seda- a coberta para ser descoberta -
Porque seda é aquilo em que quero que penses.
Mas eu não gosto do tecido – é demasiado austero

Por isso, diz-me algo mas segue-me como um alpinista
porque aqui está o olho, aqui está a jóia,
aqui está a excitação que o mamilo aprende

Eu sou desequilibrada – mas não sou louca com neve.
sou louca da mesma maneira que as jovens são loucas
com uma oferta, uma oferta…

Ardo como o dinheiro arde




Anne Sexton



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terça-feira, novembro 18, 2008

Queria descrever o meu eu como uma casa, habitada há gerações embora cheia de coisas peculiarmente minha. Mas ao final do dia, nem era preciso dizer: fecha a porta, desce a persiana, boa noite, boa noite.



Jean Day



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segunda-feira, novembro 17, 2008

Uma janela ser-me-á suficiente
uma janela para o momento da consciência
da observância
e do silêncio.




Forugh Farrokhzad



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sábado, novembro 15, 2008

sexta-feira, novembro 14, 2008

Estou a oscilar, a agitar-me, em desequilíbrio; de um lado o desejo, já com sabor a não-vida, do outro a noção do fim. Paira a ameaça sobre o corpo-depois-do-fulgor. Não há senão memória desfibrada incisiva o medo desoculto de que a serpente me engula com a sua boca desproporcionada.

Acordo tantas vezes de madrugada, o meu coração é uma planície deserta, coração dilacerado desesperado inchado cordeiro manso ou feroz de olhos furados. Não te deites docilmente, vão roubar-te tudo, o ladrão virá de noite com as suas garras venenosas e dir-te-á

«Não ames!»

Não deixes, não deixes, expulsa-o, extirpar-te-á o fígado e ficarás o que não és e és agora, não o que fomos e somos hoje, o mistério não acontecerá como o milagre não aconteceu, o depois evitará o antes e esse será o fim, a treva, os dedos sem mãos, silêncio de eterna neve.




Ana Marques Gastão




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quinta-feira, novembro 13, 2008

O profundo silêncio das flores
é um lugar de ausência. Vazia moldura
para o vôo das aves, linha oscilante
de ligeira névoa
que nada revela do que talvez esconda.




Égito Gonçalves



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quarta-feira, novembro 12, 2008

Há uma altura, antes de acordar, em que
sonho e a realidade se confundem. Por vezes,
o sono impede que se faça essa distinção;
de outras vezes, julgamo-nos metidos
na vida sem saber que ainda não saímos
do limbo nocturno. Em todos os casos,
sentimentos e emoções sobressaltam
o corpo; movemo-nos para um e outro lado
com a angústia da dupla existência; nada
dominamos das acções que, no entanto,
sofremos como se algo nos tivesse arrancado
da cama. Durante o pequeno-almoço, pensando
nisso, já pouco resta de qualquer coisa
da noite. Nem as pessoas, nem as palavras,
nem as imagens, nos atormentam com a intensidade
de há pouco. Porém, é como se nos faltasse
alguma coisa de nós. E, durante o dia, repetimos
gestos que não sabemos a quem se dirigem;
ouvimos frases de que não percebemos
o sentido.
E não sabemos, de facto,
onde encontrar uma explicação para esse
deambular entre ser
e não ser.




Nuno Júdice




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terça-feira, novembro 11, 2008

Quando se é só, inventa-se a companhia de alguém sem defeitos que nao fala, nao ouve e nem sequer se vê.



Graça Pina de Morais



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segunda-feira, novembro 10, 2008

Há algo nas manhãs que não entendo agora
e a um grito de minhas pernas não atendo.
Ainda depois da noite, noite me espia
e sonho dúvidas enormes e imóveis
como a imobilidade das aranhas.
Tão pouco tempo e tenho de deixar-me
e queria nunca ter de repartir-me.
Começa a raiva da saudade
que inventei vou ter de mim.




Olga Savary



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sábado, novembro 08, 2008

quinta-feira, novembro 06, 2008

para devolver ao corpo dias antigos
há quem olhe para a pele e leia mapas
nas linhas das rugas
só então percebe que o corpo
tem a presença da melancolia

se te prendi foram lentos os dias onde me perdi das estações
agora esperam-me as primeiras chuvas

e tu não entendes que a tua imagem está
presa nos limites das minhas palavras

explico-te então as repetições onde lentamente
envelheci no teu corpo




maria sousa




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quarta-feira, novembro 05, 2008

enquanto sonhas, as coisas tremem
como se as desfocassem
lágrimas já preparadas para serem
do sonho o teu real rosto.

acordas, porque as coisas tremem muito
e são quase uma só com muitos lados: o corpo
treme agora bem real com elas. as lágrimas

afinal escorrem. nos jornais
amanhã vão escrever seis graus
na escala do richter
que as mediu não sei bem como.




Bruno Béu




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terça-feira, novembro 04, 2008

que faria sem este mundo sem rosto sem perguntas
onde ser dura apenas um instante onde cada instante
verte para o vazio o esquecimento de ter sido
sem esta onda onde no final
corpo e sombra juntos se devoram
que faria sem este silêncio sorvedouro dos murmúrios
que anelam frenéticos por socorro por amor
sem este céu que se ergue
sobre a poeira do seu lastro

que faria faria o que fiz ontem o que fiz hoje
espreitar do meu postigo para ver se não estou só
a dar voltas e voltas longe de toda a vida
num espaço fantoche
sem voz no meio das vozes
encerradas comigo



Samuel Beckett



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sábado, novembro 01, 2008