#b-navbar { display: none; }

sábado, janeiro 26, 2013

se calhar há na distância a confirmação
de que vamos acumulando vazios

não tanto pelo que resta
mas sobretudo pela maneira
como o castelo de cartas
parece vacilar

apenas isso um tremor de paredes vazias
num tempo que não sei nomear

não é dia de fechar janelas
o papel amarelece e descola

e no fim resta o que acontece nas pausas



maria sousa




Image hosted by Photobucket.com

Etiquetas:

sexta-feira, janeiro 25, 2013


1988, CHET BAKER


Prometeu que tocaria My
Funny Valentine como nunca
o fizera. E foi, também na voz,
verdade (a verdade é sempre
uma coisa muito triste;
faltavam-lhe duas semanas para morrer).

Comprei o disco quase vinte anos
depois, e só por difícil acaso
o fiz naquela cidade, com a
mesma ou nenhuma vontade de morrer,
agora que volta a dizer "Stay
little valentine" e a chuva torna
as bicicletas uma metáfora evitável,
contrária à ferrugem do que sinto.

Sim, é isso: ninguém nos espera
- e nem todos sabemos voar, sofrer,
cantar assim o desconforto.
Nada deveria ser tão triste,
até porque nada deveria ser.

Mas não me roubem, por favor, esta canção.




Manuel de Freitas



 photo nishe-1_zpsb40a80a8.jpg

quarta-feira, janeiro 23, 2013


«Às vezes não te compreendo bem.»
«Sou uma ilha pequena, Paula.» Sim, uma ilha pequena, sem arquipélago, e à volta o oceano desconhecido e um nevoeiro tão denso que não deixava ver os barcos, se os havia. Mas era natural que os houvesse. Há sempre barcos em volta das ilhas. Estivera um dia numa ilha assim…
A voz de Paula ria na sua sala, no seu divã. «Todos o somos, não és original.»
«Mas eu sou aquela ilha.»
Pequena e com praias de cascalho, não muito belas, e voltadas para oriente. O sol abandonava-as a meio da tarde e então fazia frio e a água ainda há pouco morna e confortável tornava-se gélida, matéria opaca, cheia de vida, de morte e de mistérios. Só havia uma coisa a fazer, subir, subir à procura de um resto de sol. Mas do lado ocidental era o reino das gaivotas e dos rochedos a pique. Coisas só para olhar. Ruídos que eram silêncio. E acabava sempre por regressar à tenda onde estava acampada com uns amigos. Cansada. Farta. A querer ir-se embora e sem partir.
«Mas a tua vida é que é uma ilha, não tu.»
«Sim, a minha vida», concordou Jô. «Mas o que sou eu sem a minha vida, o que somos nós sem ela?»
«Bem, é tarde, vou deitar-me», disse Paula. «E o teu caso, na mesma?»



Maria Judite de Carvalho




Photobucket

sexta-feira, janeiro 18, 2013



a casa é uma memória onde
devagar desenho percursos
(mapas para inventar o tempo)

para a habitar reparto as sombras

e enquanto as estações se confundem
acordo para uma insónia agitada
onde uma casa existe
mas não tem paredes



maria sousa




 photo fotografia3_zps56fce690.jpg

Etiquetas:

quarta-feira, janeiro 16, 2013

Photobucket



tradução “caseira” da lebre



Sou o único actor.
É difícil para uma mulher
interpretar uma peça inteira.
A peça é a minha vida,
o meu acto único.
O meu correr atrás das mãos
e nunca as apanhar
(as mãos não se vêem -
ou seja, estão nos bastidores)
Tudo o que faço em cena é correr,
correr para acompanhar
mas sem o conseguir.

De repente paro de correr.
(isto avança um bocado com o enredo)
Faço discursos, centenas,
todos orações, todos solilóquios.
Digo coisas absurdas como:
ovos não podem discutir com pedras,
ou, mantenham os vossos braços partidos dentro das mangas,
ou, estou aqui de pé mas a minha sombra está torta.
E tal e tal.
Muitos buhs. Muitos buhs.

Apesar disso eu continuo para as ultimas deixas:
Estar sem Deus é ser uma cobra
que quer engolir um elefante.
A cortina cai.
A assistência apressa-se a sair
foi uma má interpretação.
Porque sou o único actor
e há poucos humanos cujas vidas
farão uma peça interessante,
não concordam?


Anne Sexton



Image hosted by Photobucket.com

Etiquetas:

quarta-feira, janeiro 09, 2013

  a vida é um instante dilatado à medida da vida.



Rui Nunes






Photobucket

domingo, janeiro 06, 2013


No dia em que te toquei a trança
tempo tive de ficar de frio na janela
o leite derramava na cozinha
ia muito devagarinho e descia
desenhava um nome no chão

Pensar em ti era só pensar em campeões
ou como fiz ir dentro ver o Tour de França
eu que gostei de ti no dia em que te toquei a trança
e só ficou a marca de leite na planta do pé
as letras brancas e inclinadas nas estradas



Hugo Milhanas Machado





Photobucket

sábado, janeiro 05, 2013

Há coisas que nunca
tivemos em crianças e perdem
o valor para sempre. Aquele sempre
dos primeiros dez anos, onde o tempo,
as pessoas, as coisas
parecem enormes e indestrutíveis.

Disfarçar-se de relâmpago
ou de outras coisas impossíveis, comer
todos os chocolates, ter uma bicicleta igual
à do estúpido do vizinho, fazer
as coisas que os adultos escondem
atrás da porta dos quartos, retribuir
a bofetada aos nossos
legítimos superiores, querer
morder com justa causa
tanta gente no mundo e
só poder no escuro
morder uma almofada.




Inês Lourenço




Photobucket

quinta-feira, janeiro 03, 2013

Chegou a altura de encontrar um lugar
para estar em silêncio um com o outro.
Tagarelei sem fim
em salas de professores, corredores, restaurantes.
Quando não estás perto
desenrolo conversas na cabeça.
Até este poema
tem quarenta e nove palavras a mais.






Eunice de Souza




Photobucket