quarta-feira, junho 29, 2016
quinta-feira, junho 23, 2016
Um dia deixarei para sempre o casaco no cabide da entrada
outras mãos que não as minhas haverá para o recolher
outros olhos pelos meus lhe hão-de fitar depois a ausência.
Depois, nem isso.
Há um momento em que se estende a toalha sobre a mesa dos mortos
como se tivesse sido sempre a mesa dos vivos. Esse dia virá.
Tudo então estará certo e limpo como o esquecimento.
Ou quase assim.
Dispo agora toda esta roupa e escrevo
– sem frio nem perda nem desastre –
a partir desse dia que virá, esse dia depois de mim:
lírios crescem no acaso vivo da relva
uma leve poeira se acrescenta ao ar que não respiro.
Rosa Maria Martelo
outras mãos que não as minhas haverá para o recolher
outros olhos pelos meus lhe hão-de fitar depois a ausência.
Depois, nem isso.
Há um momento em que se estende a toalha sobre a mesa dos mortos
como se tivesse sido sempre a mesa dos vivos. Esse dia virá.
Tudo então estará certo e limpo como o esquecimento.
Ou quase assim.
Dispo agora toda esta roupa e escrevo
– sem frio nem perda nem desastre –
a partir desse dia que virá, esse dia depois de mim:
lírios crescem no acaso vivo da relva
uma leve poeira se acrescenta ao ar que não respiro.
Rosa Maria Martelo
quarta-feira, junho 22, 2016
saí da cidade como de uma rua sem nome
não me lembro de nada, irei ter com o que houver
levo barulho no saco preto às costas
nódoas na roupa interior
e um poema da perna de pau
a alma foi dar horas, já não regressa e virá diferente
resta matéria gorda que a água do chuveiro não levou
um buraco no chão, e má memória
há versos que chegam à cancela como cães sem dono
outros aparecem e fazem chover
também me perco e deliro
João Almeida
não me lembro de nada, irei ter com o que houver
levo barulho no saco preto às costas
nódoas na roupa interior
e um poema da perna de pau
a alma foi dar horas, já não regressa e virá diferente
resta matéria gorda que a água do chuveiro não levou
um buraco no chão, e má memória
há versos que chegam à cancela como cães sem dono
outros aparecem e fazem chover
também me perco e deliro
João Almeida
segunda-feira, junho 20, 2016
Se sorrio aos mortos e enterro os vivos
como um objecto escuro por que
rodaram mãos e jeitos de luz? Sim.
Vivo como se não estivesse aqui
roupa leve como acontece na vida.
E vou da primeira à última batida
na respiração de um pulmão vivido.
Lê assim.
Podia arder a uma pouca distância de ti
nessa praceta que é um poema teu
— e as coisas voltariam a mim, meras,
como o ser transportada pelos dias —
mas cairei por aqui.
Meu amor.
Porta no trinco e nada nas mãos.
Há muito que é tudo o que resta.
Raquel Nobre Guerra
como um objecto escuro por que
rodaram mãos e jeitos de luz? Sim.
Vivo como se não estivesse aqui
roupa leve como acontece na vida.
E vou da primeira à última batida
na respiração de um pulmão vivido.
Lê assim.
Podia arder a uma pouca distância de ti
nessa praceta que é um poema teu
— e as coisas voltariam a mim, meras,
como o ser transportada pelos dias —
mas cairei por aqui.
Meu amor.
Porta no trinco e nada nas mãos.
Há muito que é tudo o que resta.
Raquel Nobre Guerra
sexta-feira, junho 17, 2016
Dúvidas apócrifas de Marianne Moore
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?
A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo impura-
mente, a quem dela quer falar?
Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?
João Cabral de Melo Neto
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
Não haverá nesse pudor
de falar-me uma confissão,
uma indireta confissão,
pelo avesso, e sempre impudor?
A coisa de que se falar
até onde está pura ou impura?
Ou sempre se impõe, mesmo impura-
mente, a quem dela quer falar?
Como saber, se há tanta coisa
de que falar ou não falar?
E se o evitá-la, o não falar,
é forma de falar da coisa?
João Cabral de Melo Neto
quinta-feira, junho 16, 2016
Branca-de-neve despede-se dos sete anões
Prometo escrever-vos, lenços que se perdem no horizonte, risos que empalidecem, rostos que caem sem peso sobre a erva húmida, onde as aranhas tecem agora as suas teias azuis. Na casa do bosque estalam, de noite, as velhas madeiras, o vento agita coçados cortinados, entra apenas a lua através das gretas. Os espelhos silenciosos, agora, que grotescos!, envenenados pentes, maçãs, malefícios, que cheiro a lugar fechado!, agora, que grotescos!. Terei saudades vossas, nunca vos esquecerei. Lenços que se perdem no horizonte. Ao longe ouvem-se pancadas secas, uma após outra as árvores sucumbem. Está à venda o jardim das cerejeiras.
Leopoldo María Panero
Prometo escrever-vos, lenços que se perdem no horizonte, risos que empalidecem, rostos que caem sem peso sobre a erva húmida, onde as aranhas tecem agora as suas teias azuis. Na casa do bosque estalam, de noite, as velhas madeiras, o vento agita coçados cortinados, entra apenas a lua através das gretas. Os espelhos silenciosos, agora, que grotescos!, envenenados pentes, maçãs, malefícios, que cheiro a lugar fechado!, agora, que grotescos!. Terei saudades vossas, nunca vos esquecerei. Lenços que se perdem no horizonte. Ao longe ouvem-se pancadas secas, uma após outra as árvores sucumbem. Está à venda o jardim das cerejeiras.
Leopoldo María Panero
quarta-feira, junho 15, 2016
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da
minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e
basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço
nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e
desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida
por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua
cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide
exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te
desenha.
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura.
E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água.
Julio Cortázar
Olhas-me, de perto me olhas, cada vez mais de perto, e então brincamos aos ciclopes, olhando-nos cada vez mais de perto. Os olhos agigantam-se, aproximam-se entre si, sobrepõem-se, e os ciclopes olham-se, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam sem vontade, mordendo-se com os lábios, quase não apoiando a língua nos dentes, brincando nos seus espaços onde um ar pesado vai e vem com um perfume velho e um silêncio. Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura.
E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água.
Julio Cortázar
segunda-feira, junho 13, 2016
Estava capaz de fazer uma fogueira. Apetece-te uma fogueira?
Vou fazer uma fogueira.
Estava capaz de rasgar o jornal de domingo aos bocadinhos
e tentar não ligar aos anúncios.
Estava capaz de acabar de cavar o buraco
que estive a abrir no quintal.
Estava capaz de fazer chá e tomar vitamina C.
Apetece-te uma chávena de chá?
Estava capaz de dar muito simplesmente um passeio,
Sem destino nenhum.
Estava capaz de ficar muito sossegadinho a um canto, parando de inventar motivos
para andar de um lado para outro.
Estava capaz de ter uma conversa contigo.
Apetece-te uma conversa?
Sam Shepard
Vou fazer uma fogueira.
Estava capaz de rasgar o jornal de domingo aos bocadinhos
e tentar não ligar aos anúncios.
Estava capaz de acabar de cavar o buraco
que estive a abrir no quintal.
Estava capaz de fazer chá e tomar vitamina C.
Apetece-te uma chávena de chá?
Estava capaz de dar muito simplesmente um passeio,
Sem destino nenhum.
Estava capaz de ficar muito sossegadinho a um canto, parando de inventar motivos
para andar de um lado para outro.
Estava capaz de ter uma conversa contigo.
Apetece-te uma conversa?
Sam Shepard
não tenho paciência para ouvir os outros, não tenho paciência para viver, não tenho paciência para morrer, estou aqui, parada, num desequilíbrio interminável, nunca mais acabo de cair, irrito-me se me falam, sofro se me não dizem nada, odeio o gesto caridoso: a mão de alguém nos meus cabelos, o que eu quero é uma voz que me queira, um momento de descanso nessa voz.
Rui Nunes
Rui Nunes
quinta-feira, junho 09, 2016
segunda-feira, junho 06, 2016
tradução caseira da lebre
Harux e Harix decidiram nunca mais se levantar da cama. Amam-se loucamente e não podem afastar-se um do outro mais do que sessenta ou setenta centímetros. Logo o melhor é ficar na cama, longe dos apelos do mundo. No entanto, o telefone está na mesa-de-cabeceira, e às vezes toca e interrompe os seus abraços: são os familiares que querem saber se tudo está bem. Mas essas chamadas são cada vez mais raras e lacónicas. Os amantes apenas se levantam para ir à casa de banho, e nem sempre, a cama está desarrumada, os lençóis gastos, mas eles não dão conta, cada um mais imerso na onda azul dos olhos do outro. Os seus membros misticamente entrelaçados.
Na primeira semana alimentaram-se de bolachinhas, de que se tinham abastecido abundantemente. Como as bolachas acabaram, agora comem-se um ao outro.
Anestesiados pelo desejo, arrancam grandes pedaços de carne com os dentes, entre dois beijos devoram o nariz ou o dedo mindinho, bebem o sangue um do outro; depois saciados fazem novamente amor como podem, e adormecem para recomeçar quando acordam. Perderam a conta dos dias e das horas. Não são bonitos de ver, isso é verdade, ensanguentados, esquartejados, pegajosos. Mas o seu amor está para além de todas as convenções.
Juan Rodolfo Wilcock
Harux e Harix decidiram nunca mais se levantar da cama. Amam-se loucamente e não podem afastar-se um do outro mais do que sessenta ou setenta centímetros. Logo o melhor é ficar na cama, longe dos apelos do mundo. No entanto, o telefone está na mesa-de-cabeceira, e às vezes toca e interrompe os seus abraços: são os familiares que querem saber se tudo está bem. Mas essas chamadas são cada vez mais raras e lacónicas. Os amantes apenas se levantam para ir à casa de banho, e nem sempre, a cama está desarrumada, os lençóis gastos, mas eles não dão conta, cada um mais imerso na onda azul dos olhos do outro. Os seus membros misticamente entrelaçados.
Na primeira semana alimentaram-se de bolachinhas, de que se tinham abastecido abundantemente. Como as bolachas acabaram, agora comem-se um ao outro.
Anestesiados pelo desejo, arrancam grandes pedaços de carne com os dentes, entre dois beijos devoram o nariz ou o dedo mindinho, bebem o sangue um do outro; depois saciados fazem novamente amor como podem, e adormecem para recomeçar quando acordam. Perderam a conta dos dias e das horas. Não são bonitos de ver, isso é verdade, ensanguentados, esquartejados, pegajosos. Mas o seu amor está para além de todas as convenções.
Juan Rodolfo Wilcock
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quarta-feira, junho 01, 2016
A menina dança?
Que se há-de dizer, quando um homem nos pede para dançar? Isso é que eu não vou, havemos de nos encontrar no inferno primeiro. Ora essa, muito obrigada, gostaria imenso, mas estou com as dores do parto. Oh, sim, dancemos juntos - é tão bom encontrar um homem que não tem medo de ser contagiado pelo meu tifo. Não. Não havia nada a fazer senão dizer: gosto imenso. Bem, vamos lá acabar com isto. Está bem, Cannonball, corramos por esses campos fora. Ganhaste a partida; guia tu.
Ui! Pelo amor de Deus, seu idiota, não dê pontapés. Ai, a minha canela, a minha pobre, pobre canela que sempre tive desde pequenina.
Quando te derem uma canelada, sorri.
Dorothy Parker
Que se há-de dizer, quando um homem nos pede para dançar? Isso é que eu não vou, havemos de nos encontrar no inferno primeiro. Ora essa, muito obrigada, gostaria imenso, mas estou com as dores do parto. Oh, sim, dancemos juntos - é tão bom encontrar um homem que não tem medo de ser contagiado pelo meu tifo. Não. Não havia nada a fazer senão dizer: gosto imenso. Bem, vamos lá acabar com isto. Está bem, Cannonball, corramos por esses campos fora. Ganhaste a partida; guia tu.
Ui! Pelo amor de Deus, seu idiota, não dê pontapés. Ai, a minha canela, a minha pobre, pobre canela que sempre tive desde pequenina.
Quando te derem uma canelada, sorri.
Dorothy Parker