a minha vida
Eu aos quatro anos na Feira Popular, às cavalitas do meu pai, a comer uma nuvem de algodão-doce lá nas alturas e a olhar para a minha mãe, tão pequenina, cá em baixo, a sorrir. Eu aos seis anos, com uma boneca partida, a perguntar à minha mãe se ela morreu e se vai para o céu como os meninos bons. Eu aos nove anos com um vestido novo, vermelho com riscas brancas muito finas, é o meu aniversário, estou feliz e as velas do bolo não se apagam, por muito que eu sopre. Eu aos treze anos dentro da cama, numa manhã de Inverno, a sentir um fio de sangue quente e a voz da minha mãe a dizer-me que é mesmo assim, filha, agora já és uma mulherzinha. Eu aos quinze anos encostada a uma árvore, os lábios do rapaz mais bonito da escola a aproximarem-se da minha boca e eu sem saber o que fazer. Eu aos vinte e dois anos, recém-formada, a entrar pela primeira vez num escritório e a perceber que o emprego pode ser uma prisão. Eu aos vinte e quatro anos à porta da igreja, com o Jorge a meu lado e a família nas escadas e os amigos a lançarem arroz e os pés inchados e a chuva súbita e a Catarina a crescer dentro de mim sem ninguém saber. Eu aos vinte e cinco anos na maternidade, respirando desordenadamente e fazendo força às cegas, o corpo em alvoroço, a luz mortiça nas paredes brancas, a dor maior que o mundo, o grito preso na garganta e depois aquele milagre, a minha filha pousada junto aos meus seios, a respirar comigo. Eu aos trinta anos num automóvel verde, a caminho do Algarve, com a Catarina lá atrás, a brincar com as tranças e a pedir um irmãozinho. Vejo a minha vida num relance, tal e qual como dizem que acontece a quem morre de repente. Não sei nadar, estou fora de pé e na praia continuam todos distraídos.
José Mário Silva
Eu aos quatro anos na Feira Popular, às cavalitas do meu pai, a comer uma nuvem de algodão-doce lá nas alturas e a olhar para a minha mãe, tão pequenina, cá em baixo, a sorrir. Eu aos seis anos, com uma boneca partida, a perguntar à minha mãe se ela morreu e se vai para o céu como os meninos bons. Eu aos nove anos com um vestido novo, vermelho com riscas brancas muito finas, é o meu aniversário, estou feliz e as velas do bolo não se apagam, por muito que eu sopre. Eu aos treze anos dentro da cama, numa manhã de Inverno, a sentir um fio de sangue quente e a voz da minha mãe a dizer-me que é mesmo assim, filha, agora já és uma mulherzinha. Eu aos quinze anos encostada a uma árvore, os lábios do rapaz mais bonito da escola a aproximarem-se da minha boca e eu sem saber o que fazer. Eu aos vinte e dois anos, recém-formada, a entrar pela primeira vez num escritório e a perceber que o emprego pode ser uma prisão. Eu aos vinte e quatro anos à porta da igreja, com o Jorge a meu lado e a família nas escadas e os amigos a lançarem arroz e os pés inchados e a chuva súbita e a Catarina a crescer dentro de mim sem ninguém saber. Eu aos vinte e cinco anos na maternidade, respirando desordenadamente e fazendo força às cegas, o corpo em alvoroço, a luz mortiça nas paredes brancas, a dor maior que o mundo, o grito preso na garganta e depois aquele milagre, a minha filha pousada junto aos meus seios, a respirar comigo. Eu aos trinta anos num automóvel verde, a caminho do Algarve, com a Catarina lá atrás, a brincar com as tranças e a pedir um irmãozinho. Vejo a minha vida num relance, tal e qual como dizem que acontece a quem morre de repente. Não sei nadar, estou fora de pé e na praia continuam todos distraídos.
José Mário Silva
1 Comments:
gosto tanto quando leio alguma coisa num blog que me deixa num estado tipo "parou o mundo à minha volta"
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