#b-navbar { display: none; }

quinta-feira, dezembro 22, 2022

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.




António Franco Alexandre

alibosworth-20081213-01-28

domingo, janeiro 03, 2021

 De modo diferente, com estranheza intensa,
a paixão deslumbra-se como uma passagem
sobre as criaturas. Vento em estendais de roupa,
luzes que se acendem nas rotundas, danças nupciais
de insectos nos arbustos – assim se atravessa
a expansão do mundo. Uma atenção não prende
quando se respira com este esplendor. A solidão
sossega-nos: fica-se sagrado por um olhar facílimo
e o pensamento move-se para conhecer estames,
corolas, pares de asas. O amor nada perturba:
toca-se num corpo e não se quebra, desce-se a um nome
e a voz brilha. O tempo oferece-nos presentes.



Carlos Poças Falcão

 

 

ANNETTE-PEHRSSON222

sexta-feira, dezembro 11, 2020

 À sua volta vê os seus móveis que, de acordo com os seus gostos e os seus meios, são como os quis para a sua comodidade. E eles exalam em redor o doce conforto familiar, animados como são por todas as suas recordações: já não são coisas mas como que partes íntimas de você mesmo, nas quais pode tocar e sentir aquela que parece ser a realidade tranquila da sua existência. Quer sejam faia, nogueira ou abeto, os seus moveis têm, como as recordações da sua intimidade doméstica, o sabor daquele hálito particular que germina em toda a casa e que dá à nossa vida um odor que se sente mais quando nos falta, isto é, quando se sente um cheiro diferente, mal se entra numa outra casa. 


 Luigi Pirandello  

 

 

olikellet

sexta-feira, outubro 16, 2020

 [sou uma paisagem arrancada de velha à parede] [porque eu era cicatriz. A cicatriz do que então não disse] 

 

 

José Emílio-Nelson

laurapannack41

quinta-feira, outubro 15, 2020

o alice faz hoje 18 anos 121514300-10223637898320629-64206493570021601-n

segunda-feira, outubro 12, 2020

 

Os meus olhos acolhem um bando
de reflexos, invisíveis a horas
mais sombrias, na luz aberta
deste fim de Junho. Vêm ao meu
encontro os grandes plátanos do
jardim, ameaçados pelas
prováveis escavações do Metro.
Por ora ainda matizam os rostos
dos passantes e a penumbra das
janelas. No passeio das paragens
de autocarro para Ermesinde,
Areosa e outros debruns urbanos,
o volume dos corpos recorta-se
quadriculado pela luz. Seios e
estômagos transferem-me para
um estranho país de aleitamento e
digestões. Sigo num culpado
exílio a dobrar a esquina e inclino
os passos para o Satélite, onde
regresso ao aroma navegável
do cimbalino.



Inês Lourenço lisesarfati9

sexta-feira, outubro 09, 2020

A TAREFA DE ESCREVER

Encherás as palavras de ti mesmo,
encherás as palavras de palavras,
encherás com as coisas as palavras:
ficam sempre vazias.

esvaziarás as palavras de ti mesmo,
esvaziarás as palavras de palavras,
esvaziarás de coisas as palavras:
fica sempre o vazio.

Onde estarás tu mesmo,
onde as coisas, onde as palavras?
 

 

Aurora Bernárdez

tradução maria sousa

 

 
 
Aino-Kannisto1