#b-navbar { display: none; }

terça-feira, dezembro 21, 2004

O clima natalício instala-se a pouco e pouco, a lebre delicia-se a ler

A CHRISTMAS CAROL

I

Era uma vez, em noite escura e fria,
uma muito morena toutinegra
(que assim adjectivada mais daria
com essa noite densa, escura e fria).
Era esta noite dia vinte e quatro
de um Dezembro de vento como açoite
geladíssimo, uivante, em fios de prata,
mil novecentos e noventa e oito,
e eram agora quase onze da noite,
e o frio arremetia-se de frente.

Ora a nossa morena toutinegra
que lá por ser morena não deixava
de ter cara tristonha, um pouco eslava,
tinha um sonho importante de sonhar.
Esse sonho era ser ave diferente:
em vez de toutinegra, cotovia,
ou quase via verde, ou toutirosa,
ou coisa mais gostosa de viver.
Estava-se nessa noite na floresta,
e a toutinegra, pela vez terceira,

evocou em voz alta o nome desse
que, quando mal piava e era trigueira,
a mãe lhe repetira devagar.
"Pai Natal", "Pai Natal", dizia ela,
"Concede-me o desejo de mudar
de toutinegra em quase cotovia,
ou toutirosa em brilhos de luar."
Isto dizia ela, não esquecendo
o poder da palavra, ao evocar,
poder que mais no momento em questão

(ou seja, vinte e quatro de Dezembro
de um milénio em processo de findar)
se arrepiava de um grande silêncio,
não dando sequer tema de conversa.
Mas não deixemos que isto se intrometa
dentre esta história comovente e bela
daquela toutinegra em desespero
por pedir já pela terceira vez
(e a sua curta vida eram três anos)
sempre naquele dia e à mesma hora

para deixar de ser o que era agora.
Pela terceira vez então pediu,
as asas agarradas como prece,
ao ramo mais baixinho do pinheiro.
"Pai Natal, Pai Natal, se estás aí,
embrulhando presentes coloridos,
ajaezando as renas e os compridos
fios que ligam trenó e lhe dão rumo,
recorda-te do meu pedido insane
que repito há três anos, sem parar.

Fui toutinegra boa, cumpridora,
comi sempre as minhocas que a mamã
me mandava comer. E nunca, nunca
depenei o malvado do pardal
que se mete comigo por maldade
- e vontade, querido Pai Natal,
vontade não faltou... Mas resisti.
E na escola do mocho decorei
muita matéria chata e repetida.
Mas fiz sempre os deveres, fui boa amiga.

Que mais posso fazer, se tu não ouves?"
Isto dizia a pobre, a tiritar,
não tanto pelo frio, mas pelos nervos
da espera de três anos a esperar,
sempre no mesmo sítio, à mesma hora,
todos os anos repetindo. Ora,
por essa altura estava o Pai Natal
ocupado a tratar de outros assuntos:
escrever a conferência do congresso
de Pais Natais que estava já tão perto,

esfregar as pobres costas com unguento
que o da Finlândia lhe tinha mandado,
e também conferir listas de preços
cada vez mais difíceis de gerir.
Ele era Continente, ele era Jumbo,
ele era Carrefour e mercearia,
a ver se por acaso não daria
para comprar o urso mais barato.
Que o orçamento cada vez mais curto
e um Pai Natal também não é de chumbo.

Entre tanto afazer, tanto exercício
mental, emocional, entre outros mais,
como podia o pobre Pai Natal
ligar a essas preces tão banais
como as que a toutinegra repetia?
Como podia ele? Não podia!

II

Mas ah, eis que do outro pólo outro,
ou seja, pólo sul, surge figura
estranha, diferente do que é tão costume.
vestida em tule azul em vez de feltro
vermelho; e gola em renda em vez de arminho;
e em vez do gorro de pompom macio,
um extremamente chique chapelinho.

Esta figura dirigiu-se leve,
muito elegante por entre a alvura
para, em lugar de renas, carro branco
de motor especial, movido a neve,
muito ecológico e despoluente
(que para ela era ponto assente

não abusar da mão de obra animal).
Oh, quem seria esta figura estranha
que faz o narrador omnipresente
ficar arrepiado de contar?
E como é que a morena toutinegra
conseguiu ser ouvida em pólo sul?

E como conseguiu o seu pedido
ser mais ouvido aí que em pólo norte?
São estas questões-chave nesta história
que já quase a três quartos do final.
A resposta à primeira: A Mãe Natal!
Quem mais podia ser essa figura?

Quanto às perguntas que a seguir são postas,
todas têm que ver com a primeira.
Ou seja: a Mãe Natal não tinha aquela
ansiedade de ser a mais cimeira
(além disso, os Congressos eram chatos,
e as compras, uma coisa de prazer).

Finalmente, acrescente-se que a acústica
funcionava melhor no pólo sul,
E que a otite de que o Pai Natal
padecia, este ano: bem pior
E assim na noite de desse vinte e quatro,
mil novecentos e noventa e oito,

tudo se conjugava em perfeição
para que uma morena toutinegra
perdida no negrume da floresta,
agarrada a raminho de pinheiro,
pudesse ser ouvida em seriedade
pudesse finalmente ter palavra.

Desceu a Mãe Natal, de chapelinho
disposto um pouco à banda pelo vento.
E mal chegada ao alto do pinheiro
onde a nossa avezinha, em desespero,
roía unhas, asas, engolia
comprimidos de nervos e azia,

logo fez jus à sua, ainda jovem,
mas cada vez melhor, reputação.
E com três piparotes da varinha
(que ela tinha varinha, como as fadas)
transformou a morena toutinegra
em coisa tão diferente e invulgar

que até o mocho, meio adormecido,
piou alto, exclamando: "Ó tu tão rara,
ó tu tão renascida como a fénix,
tu já não nos pertences, não és nossa,
tu és agora de paragens outras,
destinada a desígnios tão diversos!"

A toutinegra soltou rouco pio,
e, num delíquio mais próprio de trópicos,
chamou a Mãe Natal, que concluiu
o que fizera à sua criação,
notando consternada que, na pressa,
se esquecera dos pós macrobióticos,

necessários ao êxito total
de uma lisa e feliz transformação.
"Ó Mãe Natal", gemia a toutinegra,
o meu pedido era ser toutirosa,
que é coisa mais gostosa de se ver.
Mas eu não queria ter estas escamas

nem estas guelras assim penduradas
uma de cada lado. E o meu rabinho,
que era tão elegante e descuidado,
agora bifurcou-se...?! Ó Mãe Natal,
Queria ser cor de rosa e não dourada!
Ó Mãe Natal, o que é que eu vou fazer?"

A Mãe Natal pensou, mas não demais,
que lhe serviu súbita inspiração.
E logo ali imaginou paisagem
onde viver dourada fosse bom,
onde pernas ou asas: coisas poucas
e usar escafandro fosse de bom tom.

III

E é por isso que hoje, onde era antes
uma floresta densa, escura e fria,
há um lago de carpas e de trutas,
onde vive um ser estranho e infeliz:
uma dourada de escamas brilhantes
que pia como ave, sem o ser,
que canta, mas tem guelras cor de fogo
e minúsculas sardas no nariz.

Passou-se isto no tempo de uma vez,
mil novecentos e noventa e oito,
e esta história já quase a terminar.
Mas que é do Pai Natal? Que aconteceu?
Vive ainda nervoso ou já morreu?
E a Mãe Natal conseguiu regressar?

Do Pai Natal não houve mais memória,
consta que foi viver para um convento
em sítio onde qualquer ente se perde.
E a Mãe Natal tornou-se mais amena,
passou a apreciar carne de rena;
e dourinegras; e a via verde.


Ana Luísa Amaral