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quinta-feira, outubro 03, 2024

 É tão triste, a casa. Fica como a deixaram,
Afeita ao conforto dos últimos a partir,
Como que para os reaver. Mas, despojada
De gente a quem agradar, vai definhando
Sem alma para esquecer o roubo

E recordar outra vez o que era o princípio,
Um ensaio radioso das coisas como deviam ser,
Há muito malogrado. Bem se vê como foi:
É só olhar para os quadros e talheres.
As músicas no banco do piano. Aquela jarra.

 

  Philip Larkin

 


Steven-Tainsh

sexta-feira, setembro 13, 2024

 Alameda

Concordou em vivermos
juntos só depois

de termos pendurado imagens
de lugares em todas

as paredes, de modo que houvesse,
para onde se olhasse,

uma ruela ou uma alameda
verde, um ponto de fuga para


Andrea Cohen

Serenamente sobre lanternas

Trad Francisco José Craveiro de Carvalho


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quinta-feira, agosto 08, 2024

Gajas impopulares

 

 Todos têm a sua vez, agora é a minha. Ou pelo menos era o que nos ensinavam no jardim-escola. Não é realmente verdade. Alguns têm mais vezes que outros, e eu nunca tive uma, nem uma. Eu mal sei dizer eu, ou meu, tenho sido ela, a ela, aquela, há tanto tempo. Nem sequer me foi dado um nome; fui sempre a irmã feia , ponham ênfase no feia. Aquela para quem as outras mães olhavam e depois desviavam o olhar abanando as cabeças suavemente. As suas vozes baixavam ou calavam-se quando eu entrava no quarto, com os meus vestidos bonitos, a minha cara inerte e carrancuda. Elas tentavam pensar em algo para dizer que redimisse a situação - bem, ela é forte - mas sabiam que era inútil. E eu também. Acham que eu não odiava a pena delas, a sua bondade forçada? E saber que, não importava o que eu fizesse, o quão virtuosa eu era, ou trabalhadora, eu nunca seria bonita. Não como ela, aquela a quem bastava estar sentada para ser adorada. E ainda se admiram porque eu espetei alfinetes nos olhos azuis das minhas bonecas e lhes puxei o cabelo até elas ficarem carecas? A vida não é justa, porque é que eu deveria ser? Quanto ao príncipe, acham que eu não o amei? Amei-o mais do que ela; amei-o mais que tudo. O suficiente para cortar o meu pé, o suficiente para matar. Claro que me disfarcei com muitos véus, para tomar o lugar dela no altar. Claro que a empurrei da janela para fora e puxei os lençóis para cima da cara e fingi ser ela. Quem não o faria, se estivesse no meu lugar? Mas todo o meu amor chegou sempre a um mau fim. Sapatos a escaldar, barris cheios de pregos. É assim que se sente, amor não correspondido. Ela também teve um filho. A mim nunca me foi permitido. Tudo o que vocês quiseram, eu também quis. 

 

 Margaret Atwood

(tradução minha)

 

 

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terça-feira, janeiro 23, 2024

O café está aberto anda,
os mortos estão lá sentados
em cadeiras acorrentadas, bebendo vinho
À nossa custa. Há algumas casas –
Retiradas do mar – a ver.
Um pedinte recolhe moedas e
atira -as aos mortos como um sacrifício.
Do bar, estendendo-se até ao mar,
há uma estreita faixa de luz
pela qual os mortos se afastam,
sobre a água. Permanecemos, ali sentados,
até o dia esfregar os olhos.

 

Michael Krüger
 “Deus escreveu demasiado”, edição do lado esquerdo
Tradução de Francisco José Craveiro de Carvalho

 

 

 

laurapannack44

quinta-feira, janeiro 18, 2024

Este copo de água cheio de angústia
bebido no jardim tranquilo
árvores em flor
aragem, doce, leve, ondulante
mas nada faz esquecer esse fogo
lento e profundo
magma gerador de estrelas
oceano dos céus.

Livre nasce uma ilha
batida pelos ventos salgados que a embalam
e às suas praias irão dar os restos de aventuras
de meninos feitos piratas
remos partidos, bonecos destroçados
caixas hermeticamente fechadas
guardando sentimentos de caligrafia desenhada
e desenhos já descoloridos
e um pedaço de seda
embrulhado num relógio sem tempo para te amar.




Henrique Risques Pereira




lisesarfati

quinta-feira, novembro 23, 2023

Sempre


Sonhei em estar sozinha
Porque havia sempre
muita gente à minha volta.
Só tu eras eu.
Só tu renunciavas ao plural,
Ao múltiplo de dois,
Só tu sabias construir uma solidão
Em que havia espaço para nós os dois.



Ana Blandiana
(tradução maria sousa)

 

samuel-bradley3

quinta-feira, dezembro 22, 2022

Debaixo do colchão tenho guardado
o coração mais limpo desta terra
como um peixe lavado pela água
da chuva que me alaga interiormente
Acordo cada dia com um corpo
que não aquele com que me deitei
e nunca sei ao certo se sou hoje
o projecto ou memória do que fui
Abraço os braços fortes mas exactos
que à noite me levaram onde estou
e, bebendo café, leio nas folhas
das árvores do parque o tempo que fará
Depois irei ali além das pontes
vender, comprar, trocar, a vida toda acesa;
mas com cuidado, para não ferir
as minhas mãos astutas de princesa.




António Franco Alexandre

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