sábado, novembro 16, 2013
quarta-feira, novembro 06, 2013
Um quarto com janela
De há muito que conheço este abatimento que ofereço à minha sensibilidade e que não desejo substituir por algo mais confortante por me parecer ser a forma ideal da perturbação, prescindo do consolo e olho certas manifestações de prazer como espectros que tentam tomar o lugar do pleno. Durante longo tempo não podia cuidar deste abatimento, sentia o seu poder de exibir a minha negatividade mais perfeita num interior que eu tentava calafetar com gestos tendentes aos lugares comuns da vida. Era quando vivia em dormitórios aquecidos e à noite me submetia às actividades anodinamente partilhadas. Não éramos propensos a qualquer ideal, positivo ou negativo. Sujeitávamos as perturbações a uma análise de sensatez e algum afecto aturdido. Era uma obrigatoriedade esse afecto sem condão, moeda nocturna trocada para nos unir num sono em que os pesadelos eram depois narrados com desenvoltura e morbidez, para que não se atentasse às formas gráceis do mal. Só hoje, com um quarto só para mim, tenho um espaço onde não tenho que me entregar a qualquer actividade lúdica ou laboral antes de dormir, a nenhuma acção que preencha de sentidos valorativos o tempo que resta para a morte. Neste espaço que é meu posso zelar pelo que não tende à significação partilhável, pelo puro negativismo que macera deixando apenas uma sensação de impotência que não me vejo na iminência de superar. Um quarto onde entra a luz e com ela o mundo, único túmulo onde não tenho que enterrar o que já nasce abafado.
Catarina Costa
De há muito que conheço este abatimento que ofereço à minha sensibilidade e que não desejo substituir por algo mais confortante por me parecer ser a forma ideal da perturbação, prescindo do consolo e olho certas manifestações de prazer como espectros que tentam tomar o lugar do pleno. Durante longo tempo não podia cuidar deste abatimento, sentia o seu poder de exibir a minha negatividade mais perfeita num interior que eu tentava calafetar com gestos tendentes aos lugares comuns da vida. Era quando vivia em dormitórios aquecidos e à noite me submetia às actividades anodinamente partilhadas. Não éramos propensos a qualquer ideal, positivo ou negativo. Sujeitávamos as perturbações a uma análise de sensatez e algum afecto aturdido. Era uma obrigatoriedade esse afecto sem condão, moeda nocturna trocada para nos unir num sono em que os pesadelos eram depois narrados com desenvoltura e morbidez, para que não se atentasse às formas gráceis do mal. Só hoje, com um quarto só para mim, tenho um espaço onde não tenho que me entregar a qualquer actividade lúdica ou laboral antes de dormir, a nenhuma acção que preencha de sentidos valorativos o tempo que resta para a morte. Neste espaço que é meu posso zelar pelo que não tende à significação partilhável, pelo puro negativismo que macera deixando apenas uma sensação de impotência que não me vejo na iminência de superar. Um quarto onde entra a luz e com ela o mundo, único túmulo onde não tenho que enterrar o que já nasce abafado.
Catarina Costa
sábado, novembro 02, 2013
Em cada cem pessoas:
sabendo de tudo mais do que os outros:
- cinquenta e duas,
inseguras de cada passo:
- quase todas as outras,
prontas a ajudar
desde que isso não lhes tome muito tempo:
- quarenta e nove, o que já não é mau,
sempre boas porque incapazes de ser de outro modo:
- quatro; enfim, talvez cinco,
prontas a admirar sem inveja:
- dezoito,
induzidas em erro
por uma juventude afinal tão efémera:
- mais ou menos sessenta,
com quem não se brinca:
- quarenta e quatro,
vivendo sempre angustiadas
em relação a alguém ou a qualquer coisa
- setenta e sete,
dotadas para serem felizes:
- no máximo vinte e tal,
inofensivas quando sozinhas
mas selvagens quando em multidão:
- isso, o melhor é não tentar saber nem mesmo aproximadamente,
prudentes depois do mal estar feito:
- não mais do que antes,
não pedindo nada da vida excepto coisas:
- trinta, mas preferia estar enganada,
encurvadas, sofridas,
sem uma lanterna que lhes ilumine as trevas
- mais tarde ou mais cedo, oitenta e três,
justas
- pelo menos trinta e cinco, o que já não é nada mau,
mas se a isso juntarmos o esforço de compreender
- três,
dignas de compaixão:
- noventa e nove,
mortais:
- cem por cento,
número que, de momento, não é possível alterar.
Wislawa Szymborska
sabendo de tudo mais do que os outros:
- cinquenta e duas,
inseguras de cada passo:
- quase todas as outras,
prontas a ajudar
desde que isso não lhes tome muito tempo:
- quarenta e nove, o que já não é mau,
sempre boas porque incapazes de ser de outro modo:
- quatro; enfim, talvez cinco,
prontas a admirar sem inveja:
- dezoito,
induzidas em erro
por uma juventude afinal tão efémera:
- mais ou menos sessenta,
com quem não se brinca:
- quarenta e quatro,
vivendo sempre angustiadas
em relação a alguém ou a qualquer coisa
- setenta e sete,
dotadas para serem felizes:
- no máximo vinte e tal,
inofensivas quando sozinhas
mas selvagens quando em multidão:
- isso, o melhor é não tentar saber nem mesmo aproximadamente,
prudentes depois do mal estar feito:
- não mais do que antes,
não pedindo nada da vida excepto coisas:
- trinta, mas preferia estar enganada,
encurvadas, sofridas,
sem uma lanterna que lhes ilumine as trevas
- mais tarde ou mais cedo, oitenta e três,
justas
- pelo menos trinta e cinco, o que já não é nada mau,
mas se a isso juntarmos o esforço de compreender
- três,
dignas de compaixão:
- noventa e nove,
mortais:
- cem por cento,
número que, de momento, não é possível alterar.
Wislawa Szymborska